Consoante se infere do assunto a que se acha subordinada a parábola evangélica cujo título nos serve de epígrafe, parece que melhor lhe assentaria a denominação seguinte: O Pobre e o Rico.
Porque teria Jesus dado um nome ao pobre, deixando de o fazer ao rico? Qual será a razão desta razão?
Segundo supomos, o caso passou-se assim. O Mestre achou de bom alvitre formular uma parábola sobre as duas categorias de provações, a riqueza e a pobreza. Voltou, então, seus olhos para a sociedade dos pobres, e encontrou ali um homem paciente e resignado, humilde e cheio de fé, que suportava galhardamente a dura prova que lhe fora destinada. Esse homem chamava-se Lázaro. Disse, pois, o Senhor: Eis aqui uma das personagens para a parábola. Perscrutando, em seguida, o arraial dos ricos, verificou que eram todos, ou quase todos, igualmente egoístas e duros de coração. Diante disso concluiu o Mestre. Denominarei com o nome genérico esta outra figura do apólogo que idealizei — o rico — visto como é tão difícil encontrar exceções nesta classe como é difícil passar o camelo pelo fundo da agulha. Ficou, por esse motivo, assim denominada a parábola: Lázaro e o rico.
O rico vestia-se de púrpura e linho finíssimo. Vivia banqueteando-se esplendidamente, Lázaro, enfermo e paupérrimo, mendigava o pão de cada dia. Recostado aos portais do rico, esperava, em vão, que se lembrassem de lhe mitigar a fome. O rico, na embriaguez dos prazeres, não no via. Tinha a mente enevoada pelos vapores das libações alcoólicas, e o coração impassível, mergulhado no paul do sensualismo. Tão mesquinho era o seu estado de alma, que os próprios irracionais lhe levavam a palma em matéria de sentimentos. E' assim que os cães, condoídos de Lázaro, vinham acariciá-lo, lambendo-lhe as feridas.
Eis que certo dia a morte bate às portas de ambos: morre Lázaro e morre também o rico. A morte, rigorosamente imparcial como é, não distingue os ricos dos pobres, nem tão pouco aqueles que gozam daqueles que sofrem.
No entanto, a morte nada destrói: transforma apenas. Lázaro e o rico passaram para o plano espiritual. Ali, Lázaro é feliz, fruindo, no seio de Abraão a doce paz de uma consciência tranqüila e a alegria do combatente que viveu a campanha e entra na posse dos louros da vitória. E o rico, tendo falido na prova por que viera de passar, sente-se confuso e humilhado com a derrota. Ralado de remorsos, lembra-se do seu passado pecaminoso; e Lázaro — aquele que virtualmente fora sua vítima — aparece-lhe sereno e venturoso. Cena curiosa, então, se desenrola: não é mais Lázaro que mendiga do rico; é o rico que mendiga de Lázaro, dizendo: Pai Abraão, manda Lázaro aplacar as minhas aflições; que ele venha suavizar, de algum modo, o fogo deste remorso que me consome. E a voz da Justiça retruca pela boca de Abraão: Meu amigo, as condições de Lázaro e a tua são opostas. Cada um colhe aquilo que semeia. Tu és um vencido, Lázaro é um vencedor. Como pretendes agora anular, num dado momento, os efeitos de uma causa que está contigo, que foi criada por ti no decorrer de uma existência toda? Entre o estado dos que triunfam e dos que sucumbem medeia um abismo, que não pode ser transposto como imaginas. A Natureza não dá saltos; este axioma é verdadeiro tanto no plano físico quanto no espiritual. Tens que esgotar o cálice, tens que pagar até o último ceitil. As responsabilidades contraídas, na vida terrena, acompanham o Espírito onde quer que ele se encontre. Nada pode suspender o curso dessa lei.
Oh! pai Abraão, retruca o rico, cujos sentimentos começam a despertar, graças ao aguilhão da dor: Manda alguém avisar meus cinco irmãos acerca destas coisas, a fim de evitar que venham a cair nestes tormentos. E a voz da Justiça obtempera pela boca do Patriarca: Teus irmãos estão, como estiveste, em provas. Lá mesmo na Terra há quem os advirta sobre isso. Se eles não ouvem a esses, não ouvirão tão pouco a um mensageiro celeste. Quando os homens se entregam à loucura dos prazeres sensuais, ficam animalizados e inacessíveis às vibrações que os anjos lhes transmitem. Como queres, pois, que um Espírito possa despertar
teus irmãos, quando não lograram despertar-te! A justiça se cumprirá com eles como se está cumprindo contigo: a dor ensina-los-á a compreender a responsabilidade em que todos se acham perante a soberana e indefectível justiça de Deus. A dor os fará saber e sentir que aqueles a quem muito é dado — seja em bens espirituais, seja em bens temporais — muito será exigido; ensinará também que os homens são responsáveis, não só pelo mal que praticam, como pelo bem que, podendo, deixam de praticar. E o rico conformou-se, compreendendo que — dura lex, sed lex.
Livro Em Torno do Mestre
Autor: Pedro de Camargo – Pseudônimo Vinicius
Local de Edição: Brasília – DF – Brasil – 1939
Paginas: 122 até 124
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